Tempo de Repensar a Contribuição do Trabalho

piqsels.com-id-otrsaA maioria dos economistas tem subestimado largamente os desafios econômicos colocados pela pandemia de Covid-19. Sem uma compreensão correta destes desafios, as agressivas medidas monetárias e fiscais que muitos governos estão adotando ficarão muito aquém de seus objetivos. Estas medidas entrarão para a história como Linhas Maginot econômicas – versões ampliadas de ferramentas projetadas para combater crises passadas.

A pandemia coloca desafios econômicos novos e únicos, pois compromete nossa habilidade de participar de atividades produtivas e comerciais que requerem contato próximo entre grupos de pessoas – o que inclui a maioria dos ofícios que sustentam uma economia moderna. Os epidemiologistas dizem que o confinamento será necessário por vários meses. Deste modo, reagir de uma maneira que minimize a perda de vidas e salvaguarde nossa capacidade produtiva de longo prazo exige a tomada de duas providências: fechar temporariamente grandes setores da economia e direcionar os recursos produtivos da sociedade aos tipos de trabalho necessários para enfrentar a pandemia.

Muitos economistas ainda não entenderam isso, em parte porque a escala e o escopo das ações necessárias vão além dos limites do pensamento econômico convencional e além do que geralmente consideram serem “questões econômicas” legítimas.

A pandemia requer uma mobilização sem precedentes daquilo que os economistas feministas chamam de trabalho de cuidado: trabalhar para cuidar de nós mesmos, de nossas famílias e de nossas comunidades. Ao longo das próximas semanas ou meses, a maioria das pessoas precisa estar focada em uma função vital: cuidar da saúde coletiva e ajudar a salvar milhares ou até milhões de vidas ficando em casa. Muitas famílias terão que fazer isso enquanto simultaneamente cuidam de milhões de crianças que agora estão fora da escola, de outros entes queridos que não conseguem cuidar de si mesmos sozinhos, e daqueles que ficam doentes mas não precisam de hospitalização.

É preciso alocar recursos para habilitar as pessoas a desempenharem este serviço.

Aqui nos deparamos com sérios obstáculos. Refletindo atitudes sociais sobre o assunto, a maior parte dos economistas desvaloriza fundamentalmente o trabalho de cuidado. Este é predominantemente feito por mulheres, pobres, imigrantes e minorias. Quando envolve pessoas trabalhando em suas próprias casas, os economistas não o consideram como trabalho produtivo. Não conta para o cálculo do PIB. Quando é feito por trabalhadores em creches, escolas, hospitais ou casas, é quase sempre muito mal pago. A sociedade usufrui desse tipo de trabalho sem dar muito em retorno àqueles que o realizam. A situação atual oferece um forte exemplo de como a sociedade habitualmente tira vantagem dos trabalhadores engajados em trabalho de cuidado: muitos empregadores esperam que os funcionários atualmente trabalhando em casa enquanto cuidam de crianças pequenas mantenham seus níveis regulares de produtividade.

A sociedade também desvaloriza exageradamente outros tipos de trabalho urgentemente necessários para enfrentar a pandemia. A sociedade pede que enfermeiros, médicos, atendentes, zeladores, funcionários de supermercados, motoristas, carteiros, servidores públicos etc. assumam medidas de risco pessoal que nenhum investidor jamais assume. No entanto, enquanto níveis grotescamente altos de renda para investidores são regularmente justificados com base no risco de perda de ativos que eles enfrentam, os profissionais acima mencionados têm níveis muito baixos de remuneração, condições precárias de trabalho e limitadas proteções a seus benefícios.

Os mercados de trabalho não geram salários que refletem o imenso valor social desses trabalhos. Assim como o trabalho de cuidado, muitos desses trabalhos são feitos por mulheres, pobres, imigrantes e minorias. Os salários de mercado e as condições de trabalho refletem as posições sociais precárias e, às vezes, o absoluto desespero daqueles que os executam. Trabalhadores criticamente importantes da Amazon e da Instacart nos EUA já ameaçaram entrar em greve caso as condições não melhorem imediatamente.

Para permitir que milhões de pessoas se concentrem nas áreas de trabalho necessárias para combater a pandemia, a sociedade precisa reconhecer os valiosos bens públicos que o trabalho de cuidado gera e, além disso, recompensar os profissionais que executam tarefas essenciais de acordo com a contribuição social que seu trabalho faz.

Isto pode ser imediatamente conseguido através de medidas que também ajudariam os trabalhadores e os pequenos e médios empresários afetados pelo fechamento temporário de suas indústrias: transferências monetárias mensais universais que permitam que todas as famílias se concentrem nos trabalhos de cuidados que precisam ser realizados durante a pandemia; moratória legal sobre pagamentos regulares de hipotecas, aluguéis e outras dívidas que famílias e empresas enfrentam; melhorias significativas nas taxas de remuneração e nas condições contratuais daqueles que executam trabalhos essenciais fora de suas casas; e garantia de provisão pública universal de benefícios sociais, como seguro de saúde para todos e licença médica e seguro de vida para trabalhadores essenciais.

Além de ações imediatas para lidar com a pandemia, a crise atual expôs a necessidade fundamental de se repensar o modo como as economias e a maioria dos economistas valorizam o trabalho sem o qual nossas sociedades não poderiam funcionar. Abordagens econômicas inovadoras, capazes de resolver esse problema, podem ajudar as sociedades a construir economias mais robustas, sustentáveis e equitativas, que recompensem cada trabalho de acordo com as contribuições reais que ele faz.

Paulo dos Santos é Professor Assistente de Economia da The New School for Social Research. Ele tweeta em @plbds. Tradução de Yasmin Geronimo (EPPEN-UNIFESP) e revisão técnica de André Roncaglia de Carvalho (Departamento de Economia, EPPEN-UNIFESP)